(Texto do Professor Duncan Alexander Reily )
http://metodistavilaisabel.org.br/docs/FUNDAMENTOS_DOUTRINARIOS_DO_METODISMO.pdf
O termo "credo", vocábulo latino que significa "eu creio", se refere a um
resumo, geralmente sucinto, de um determinado sistema de crença. Os israelitas
possuíam um credo que, conforme a tradição rabínica, consistia originariamente
nas palavras, "Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor" (Dt 6:4).
Em conseqüência dessa profunda convicção de que Yahweh é o único Deus e em
resposta à aliança por ele estabelecida com seu povo, vinha a obrigação de lhe
consagrar o amor total: "Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua alma, e de toda a tua força" (Dt 6:5).
Não admira, portanto, que o credo da primeira geração de cristãos tenha sido
muito semelhante ao de Israel, a saber, "Jesus é Senhor" (Rm 10:9; 1Co 12:3).
Nestas curtas palavras encontramos o cerne da crença da Igreja primitiva a
respeito de Jesus, que podemos resumir assim:
1. Jesus é Deus! O termo "Senhor" é reservado, no Antigo Testamento,
apenas para Deus. No Novo Testamento, após a ressurreição, o termo é
freqüentemente atribuído a Jesus Cristo. As referências são abundantes
demais para serem mencionadas, mas uma muito significativa é a de Atos
2:36: "a esse Jesus a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo".
Paulo escreveu na sua Epístola aos Romanos: "Declarado filho de Deus em
poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos –
Jesus Cristo, nosso Senhor" (Rm 1:4).
Citemos apenas mais uma testemunha antiga, o mártir Inácio de Antioquia.
Inácio, nas suas sete epístolas, se referia, com toda a naturalidade, a Jesus como
"Deus nosso". (11) Esta afirmação que Jesus era Deus, tremenda declaração
teológica, teria profundas conseqüências no desenvolvimento da teologia,
particularmente nas doutrinas da Trindade e da Cristologia.
2. A confissão "Jesus é Senhor" era excludente, como o era o credo judaico,
"O Senhor nosso Deus é o único Senhor." Como Yahweh não admitia
que os israelitas dividissem sua adoração com Baal, o Deus dos cristãos
era seu único Senhor; ele, e não César, era o Senhor da sua vida. Esta
lealdade suprema e absoluta levaria muitos cristãos ao martírio, em imitação
ao próprio Jesus, que é designado "a fiel testemunha" (ou seja, o fiel mártir),
em Apocalipse 1:4.
O martírio de Policarpo, no ano 155, ilustra bem o caso. O capitão da guarda,
encarregado do caso, tentou persuadir o velho bispo a oferecer uma pitada de
incenso a César como Deus, daí salvando-se da morte. "Que mal há em dizer,
'César é Senhor?" Policarpo, após um período de silêncio, declarou: " Por 86 anos
tenho sido servo de Cristo, e ele nunca me fez mal. Como posso blasfemar o Rei
que me salvou?" Portanto, o mais antigo credo dos cristãos era um credo político,
pois era uma declaração sobre a verdadeira soberania da terra.
3. Como torna claro o testemunho de Policarpo, o credo era também uma
declaração de lealdade pessoal. Quem afirmava "Jesus é Senhor" estava
dizendo "Jesus é meu Senhor; eu sou o servo dele. Não estou mais a
serviço do meu próprio 'eu', do mundo ou mesmo da estrutura política do
mundo, pois meu Senhor é Jesus Cristo."
Quem tomava esse tipo de decisão estava em condições de formalizar uma
decisão pelo rito de iniciação à Igreja, o batismo. Aliás, o batismo passou a ser o
momento de o novo convertido confessar sua fé perante a congregação. Via de
regra, cada igreja local desenvolvia seu credo batismal, mas havia uma grande
semelhança entre os antigos credos que nos foram preservados e estes
acompanharam o desenvolvimento cristológico dos antigos pais da Igreja, como
Inácio e Tertuliano. Temos, por exemplo, um trecho de Inácio que parece um credo,
e, possivelmente, esse ou um credo semelhante tenha sido empregado como tal
em Antioquia.
“...Jesus Cristo, o qual era da raça de Davi, que foi o filho de Maria, que
realmente nasceu e que comia e bebia, foi realmente perseguido sob Pôncio
Pilatos, foi verdadeiramente crucificado e ele morreu... o qual foi realmente
ressuscitado dos mortos, seu Pai tendo-o levantado, o qual da mesma forma
levantará a nós que cremos nele”.
(12)
O credo primitivo, que era cristológico, então deve ter-se unido com a fórmula
batismal de Mateus 28:19 ("batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo") por ser a fórmula trinitária mais apropriada ao batismo.
Tendo acontecido em época de perseguição, cada igreja local tendia a
guardar a forma exata da sua confissão em sigilo. Portanto, não é possível traçar
com absoluta precisão a evolução da forma do Credo que passou a ser o
Apostólico, mas podemos afirmar que o Credo Apostólico representa o credo
batismal típico da Igreja Cristã oriental e que este credo passou a ser
largamente aceito no Ocidente após o período da perseguição.
Em todos os grandes pontos, com exceção da frase "desceu ao Hades", a
forma do Credo Apostólico hoje é virtualmente idêntica entre as diversas confissões
protestantes e a Católica Romana. No ritual que João Wesley preparou para os
metodistas norte-americanos, em 1784, celebrarem o "Culto Dominical", a frase
"desceu ao Hades" fazia parte, mas a Igreja Metodista Episcopal, na segunda
edição da sua liturgia, eliminou-a. Essas palavras foram as últimas a serem
acrescidas ao Credo, presumivelmente devido à fraca base bíblica. (13)
Já vimos como o I Concílio Geral da IMB, em 1930, decidiu restaurar a frase
mas, curiosamente, o Credo aparece nos Cânones de 1934 sem a frase, apesar
de o 2° Concílio reiterar a decisão. Eis a forma do Credo nos Cânones de 1934
(página 203):
Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra; e
em Jesus Cristo, seu Unigênito Filho, nosso Senhor; o qual foi
concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria;
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos; foi crucificado, morto e
sepultado; ao terceiro dia, ressurgiu dos mortos, subiu ao Céu e
está à direita de Deus Pai, Todo-Poderoso, de onde há de vir, no
fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo; na santa Igreja de Cristo; na comunhão
dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição do corpo, e
na vida eterna. Amém.
Para que serviu o Credo na sua forma clássica?
Já vimos que, na sua forma mais primitiva ("Jesus é Senhor"), o Credo era
uma afirmação de fé em Jesus como Deus e Senhor, ou seja, um credo
cristológico. Unido à fórmula batismal de Mateus 28:19 ("batizando-os em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo"), o Credo passou a ser também uma
confissão de fé batismal, de estrutura basicamente trinitária, o que continua a ser
até o dia de hoje. Positivamente, essa afirmação é um pequeno catálogo cristão
dos artigos da fé, porém, com muita ênfase em Cristo, que, ao longo da história,
tem sido a questão teológica mais controvertida. Em outras palavras, a grande
questão teológica é: "Quem é Jesus Cristo?". O Credo responde a essa pergunta
de forma ortodoxa, afirmando a plena divindade (ele é, além de "Cristo", o
"unigênito Filho" do Deus Pai) e sua plena humanidade (nasceu, sofreu, morreu,
foi sepultado etc).
A história das controvérsias cristológicas mostra que tem sido mais difícil
acreditar-se na humanidade do que na divindade de Cristo! E, na realidade, no
Credo Apostólico, a divindade é mais enfatizada do que a humanidade. Além de
afirmar a fé em Jesus Cristo como Deus encarnado, o Credo é também trinitário,
pois aquele que faz essa confissão de fé afirma sua crença em um Deus que é
Pai, Filho e Espírito Santo.
O último parágrafo do Credo, com brevidade impressionante, cobre as
outras grandes áreas da nossa crença que, na teologia, recebem nomes gregos
compridos, a saber. eclesiologia (a doutrina da Igreja; convém notar aqui que, para
Martinho Lutero, "a comunhão dos Santos" era a expressão da natureza da Igreja,
ou seja, a Igreja é essencialmente o povo de Deus); soteriologia (redenção); e
escatologia (as "últimas coisas”). (14)
Mas, se o Credo fornecia ao cristão um breve resumo dos artigos principais
da sua crença (sua função positiva), o Credo também tinha, desde sua
formulação, e continua a ter hoje, uma importante função negativa, ou seja, a de
combater erros doutrinários. Um dos mais sutis erros doutrinários dos primeiros
séculos (ou seja, uma das mais perigosas heresias) era o docetismo. O termo vem
de um vocábulo grego que significa "aparência", pois os docetistas negavam a
verdadeira humanidade de Jesus. Para eles, Jesus apenas parecia ser um
verdadeiro homem, de carne e osso, mas realmente ele era um ser só espiritual,
seu corpo sendo apenas uma ilusão, uma aparência e não uma realidade. O
docetismo atraía muitas pessoas, pois lhes soava bem "espiritual". Como vimos
acima, o Credo afirma a realidade da humanidade de Jesus, frisando o fato de
que ele realmente sofreu, morreu, e foi sepultado. (15)
O Credo também afirma a criação do universo por Deus Pai ("Creio em
Deus Pai, Todo-Poderoso, criador dos céus e da terra"), um princípio central da
Bíblia, e particularmente do Antigo Testamento. Tal afirmação é, ao mesmo
tempo, uma refutação da idéia gnóstica de que o mundo, de forma alguma poderia
ter sido criado por Deus, de natureza bom, pois, para eles, o mundo (e toda a
matéria) é essencialmente mau (para eles, só o espírito é bom).
Portanto, o Credo
é anti-gnóstico na sua forma. Podemos dizer que o Credo é também de índole
hebraica e não helenística. Ele reconhece a criação como coisa boa ("Viu Deus
tudo quanto fizera, e eis que era muito bom" – Gn 1:31), percebe Jesus como
verdadeiro homem, tendo corpo verdadeiro, afirma a "ressurreição do corpo", etc.
O Credo se opõe à dicotomia que tão freqüentemente fazemos entre a "parte
espiritual" e a "parte material", reconhecendo o ser humano como um ser integral
(não uma alma "presa" num corpo), vê a Igreja como "a comunhão dos Santos",
etc.
O Credo, portanto, está em harmonia com o conceito do "Shalom" dos judeus,
que significa paz, mas também significa bem-estar, colheitas abundantes, saúde,
longa vida, certamente incluindo o que Jesus nos ensinou a pedir ao Pai, "o pão
nosso de cada dia" (Mt 6:11).
Há importantes implicações aqui para nós hoje, como sugeri aos homens da
Quinta Região no seu Congresso (1991); eis duas delas:
1. Deus criou o mundo, preserva-o e cuida dele! Isto tem profundas
implicações para nós hoje numa hora em que estamos
progressivamente desgastando as riquezas naturais, poluindo o planeta
(ar, água e terra!) e criando condições em que a própria sobrevivência
humana na terra está sendo ameaçada! Questões de ecologia e meio
ambiente assim se tomam assuntos ligados à nossa fé! Crimes contra o
meio ambiente são pecados contra o Criador!
2. Deus valoriza sobremaneira o ser humano, criando mulher e homem à
sua imagem (Gn 1:27), dando-lhes domínio sobre a criação (Gn 1:28; SI
8:6-8) e encarregando-os com a responsabilidade de "cuidar do jardim"
(que simboliza a criação toda – cf. Gn 2:15). Ele faz o ser humano "um
pouco menor do que Deus" (Sl 8:5), cujo valor excede o de todas as
coisas (Mt 17:26). O ser humano, criado por Deus, é uma unidade, cujo
corpo também tem imenso valor. Jesus teve compaixão dos doentes, dos
cegos, dos leprosos; ele considerou parte da sua missão divina trazer
saúde a muitos. Ele não apenas alimentava multidões famintas, mas
chegou a identificar-se com os famintos, os nus, os encarcerados e os
espezinhados (Lc 4:18-19; Mt 25:31-46).
Certamente os leitores perceberão muitas outras implicações dos princípios
mencionados aqui.
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